O Violeiro do Diabo e a Fuga dos Pensamentos de Deus

Helena Meirelles (Foto Rui Mendes)


     Reza a lenda que o Violeiro do Diabo ousou subir o mais alto monte do planeta, onde estavam guardados os Pensamentos de Deus. O tesouro sagrado do Altíssimo que está guardado desde que o Senhor se arrependeu de criar a humanidade e passou a não confiar nela. Impedido pelos anjos protetores de abandonar o solo sagrado portando tamanha riqueza, o violeiro não viu alternativa se não a levar consigo para o interior da Caverna Faminta, onde quem quer que entrasse, jamais sairia, incluindo os anjos.

      De qualquer forma, eles montaram guarda na entrada da caverna, afinal tratava-se do Violeiro do Diabo, o anjo caído que tramou a própria queda só porque estava entediado, para alguns ele é o demônio para quem todas as portas da terra se abrem para não serem arrombadas, aquele cuja malandragem de tão sutil e sofisticada, dificilmente ofende, mas ele sempre sai em vantagem. Podia se esperar tudo de tal criatura em poder do tesouro sagrado.

      Depois de sete dias sem nenhuma espécie de vida manifestar qualquer sinal, a guarda confabula, decide e um dos anjos anuncia:

      — Esta é a última noite que aguardamos pela saída do Violeiro do Diabo em poder dos Pensamentos de Deus, depois disso a criatura será dada como morta e o tesouro dado como protegido nas profundezas da Caverna Faminta.



      As horas já haviam devorado um pedaço da noite, e eis que de repente começa a sair uma fumaça tão densa que a boca negra da caverna fica coberta por uma cortina cinza que tomava o rumo do céu.

      A guarda, notadamente espantada confabula, decide e um dos anjos anuncia:

      — Esperaremos a fumaça passar, e então, tomaremos uma atitude.

      Se passam mais sete dias e nada além de fumaça. A guarda voltou a confabular, decidir e o anjo anunciar:

      — Se ao sol nascer a fumaça não cessar, o Violeiro será dado como morto e os Pensamentos de Deus, dados como protegidos nas profundezas da Caverna Faminta pela fumaça da sarça ardente que não se consome. E é essa história a ser contada.

       Instantaneamente a fumaça cessa, os anjos se posicionam para invadir, o som de uma viola graciosamente dedilhada ecoa e a guarda já sabe quem vem a seguir: é ele, o Violeiro do Diabo. Portando apenas um sorriso satisfeito e uma viola alucinada, sua música alegra os anjos e os coloca em baile. Violino, flauta, tuba, pandeiro, triângulo, bongô; cada anjo assume um instrumento e festeja como se não estivesse em missão. Isso dura até o amanhecer, quando o arauto interrompe a flauta, a tira da boca e diz:

      — Lá vem o dia!

      Os demais anjos param a dança e os instrumentos e se reúnem novamente para confabular. O arauto se vira para o violeiro e brada escandalosamente:

      — Onde estão os Pensamentos de Deus? E que quantidade assustadora de fumaça foi aquela?

      — Ah! Claro! Vocês não sabem o que exatamente são os Pensamentos de Deus, não é?

      — É o tesouro sagrado do Altíssimo...

      — Sim, mas vocês não sabem como ele é de fato...

      — Os Pensamentos de Deus não tem uma forma definida, se é onde você quer chegar.

      — Têm forma sim... quero dizer, tinham forma sim! E aquela fumaça toda fui eu fumando os Pensamentos de Deus.

      — Você quer dizer que eles não existem mais?

      — O que quero dizer é que eles voltaram para além das nuvens, e se vocês ainda têm a missão de protegê-los, deveriam estar seguindo na mesma direção, ao alto e além.



      Sem mais perguntas os anjos seguiram rumo ao infinito.

      Até hoje se você encontrar o Violeiro do Diabo, provavelmente num bar qualquer, ele vai querer te contar a história de como enganou um exército de anjos e os mandou para a PQP. Se ele tiver certeza de que acredita em sua versão da história, te revela o que aconteceu de fato com os Pensamentos de Deus.

      No meu caso, acredito que tenha notado, desde o início, que sou o tipo de pessoa que ouve alguém confessando que é um mentiroso e segue acreditando em qualquer coisa que a pessoa disser, então contou tudo sem cerimônia:

      — Minha primeira preocupação quando entrei na caverna, foi encontrar o lugar mais profundo e seguro para descobrir como eu faria uso daquele poder todo que tinha em mãos, sem o risco de ser interrompido. Passei dias caminhando caverna adentro sem encontrar o que me fizesse parar e dizer "este aqui é um bom lugar". A angústia e o desespero começaram a me dizer que a caverna só queria me engolir. Caí de joelhos sentindo todos os tipos de dores, fomes, calafrios e enjoos. Depois de algum tempo de olhos bem apertados buscando minhas próprias trevas, abri os olhos e não encontrei os Pensamentos de Deus. Procurando desesperadamente comecei a ver e viver coisas das quais jamais encontraria vocabulário para traduzir, compreender e transmitir. Foi aí que me dei conta que aquilo tudo que estava vivendo, tratava-se dos Pensamentos de Deus. Esbaldei-me na experiência e decidi que jamais abandonaria tal tesouro perdido nas profundezas daquela caverna. Mas, também não poderia sair de lá carregando ele comigo. Os anjos não permitiriam. Naturalmente, fui buscar a resposta do que fazer dedilhando as cordas da minha viola. Logo eu tinha um punhado de canções, porém, os Pensamentos de Deus haviam desaparecido novamente. Nem tive tempo de iniciar uma nova busca, de cara tive a revelação: os pensamentos do Altíssimo não desapareceram, eles se fizeram música, minha música. E a partir daquele instante eu poderia levá-los comigo para além dos limites do solo sagrado, e assim o fiz. O restante você já sabe. A história que contei para os anjos, inventei na hora em que me questionaram, só pra deixar registrado o nível da minha habilidade de improvisação.

      — E a fumaça, o que era então?

      — Não sei bem. Mas imagino que seja do fumo que consumo quando estou tocando e compondo na minha viola. Não sabia que era tanto assim.

      Quando perguntei quanto às canções que costumavam ser os pensamentos de deus, ele disse que as mantêm a disposição de compositores que provam desejo genuíno de que sua música seja conhecida ao nível popular e esteja disposto a oferecer sua essência por isso, o que se banalizou como "vender a alma pro diabo". Mas não deixa de ser verdade. "Se você quer possuir os pensamentos de deus, a sua alma é o mínimo que a responsabilidade de tamanha posse vai exigir. Até porque o compositor que se provar digno tem à sua disposição a quantidade de pensamentos adequada à essência do seu desejo.", defende o violeiro de maneira enfática, em seguida esvazia a garrafa de vinho em um só gole, bate na mesa, diz que precisa ir e levanta de olho na porta.

      — Espera aí! Você me deixou cheio de perguntas. Tem que me explicar direito como é esse negócio de um demônio possuir o mais sagrado tesouro divino. Por que, realmente, os pensamentos de Deus estavam protegidos? E por que você faz questão de que todos tenham acesso? Os compositores têm consciência disso? Quem são eles? Dentre as músicas mais famosas, quais...

      — Espera aí, você! Eu já disse que tenho que ir. Agora tenho que recuperar uma canção que está em poder da Morte. Ela condenou recentemente um compositor a ter sua existência apagada, e ficou com a música do cara pra ela. Devo pegar de volta antes que use a canção em fins próprios.

      — Quando nos veremos novamente?

      — Quando eu quiser. Ou seja... — fez uma pausa, abaixou a cabeça e começou uma melodia — na próxima vez que você ouvir ao acaso da voz de Cartola "Deixe-me ir! Preciso andar, vou por aí a procurar...".

      Se lançou porta a fora tocando e cantando, deixou-me apenas a angústia da curiosidade e a vontade de ouvir novamente todas as minhas músicas favoritas até descobrir quais delas um dia já habitaram a divina mente criadora.



Continua...


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