O Silêncio do Seu Bundão


      Seu Bundão não gostava nada do lugar que ocupava na sociedade. E ainda tinha isso. A consciência social é um agravante quando suas tendências suicidas têm a ver com o fato de você ser alguém em quem os outros cagam, peidam, sentam em cima e de vez em quando enfiam objetos fálicos. Seu Bundão, inclusive, se achava velho de mais para adquirir esse tipo de consciência. Era tudo em silêncio. Apenas na solidão consegue botar tudo pra fora. O único que pode liberar Seu Bundão para se expressar, é o médico:
"Seu Bundão..."
"Pode me chamar de 'Bundão'.
"Bundão, não faz bem segurar. Solta tudo!"
"Mesmo que alguém ouça?"
"Óbvio! É uma das coisas mais naturais do ser humano."
"Mas o que os outros vão pensar, doutor?"
"Isso não tenho como saber."
"Eu sei. Elas vão me chamar de malmal-educado, deselegante..."
"São apenas adjetivos. E você não tem como saber ou controlar também. O que você pode controlar é o que consome e mantém no seu organismo. O que, como, onde e quando tem algo para liberar, está diretamente ligado a como se relaciona tudo o que está dentro de você. Por isso é importante não se apegar a merda nenhuma. As merdas vem e vão. Essa é a sua vida, Seu Bundão."
      Assim que saiu da Kombi do médico, foi inevitável pensar na vida que levara. Seu Bundão já foi alguém muito importante e famoso. Atuou como engolidor de piroca na era de ouro da indústria pornográfica. Na época em que a atividade era chamada de "tomar no cu" e era vista como algo negativo, marginalizado, Seu Bundão quebrou padrões e foi parar nas telas do cinema, da televisão e nas vídeo locadoras. Sob o alter ego de Cu de Aço contracenou com os maiores, Picone, Bengala, Holmes, Driglers. A massiva aceitação popular o levou para os palcos dos programas de auditório, foi integrante disputado pelos maiores grupos de Axé, Funk, Hip Hop e Pop do planeta. Ele era a grande paixão e orgulho nacional. Seu sucesso pareceu não ter limites. Ao ponto de criar-se uma igreja em sua homenagem, A Igreja dos Sodomitas do Juízo Final.
      O problema foi justamente essa idolatria. Para se ter uma ideia, as pessoas batizavam seus filhos de Cu e Bundão, ou juntavam os nomes e batizavam de Cuzão. De repente criou-se uma geração Cus, Bundões e Cuzões. Depois que o povo descobriu o prazer de tomar no cu, passou a ser algo cotidiano, em seguida veio banalização e, paralelamente, a perseguição por parte da Sociedade Hipócrita dos Moralistas de Plantão (S.H.M.P.) convertendo a opinião.
      Por um bom tempo se manteve como algo negativo e ninguém mais quis ser associado a tomar no cu. Os que haviam recebido o nome em homenagem ao Cu de Aço, se dividiram entre suicidas, homicidas, pessoas que simplesmente mudaram de nome, pessoas que não mudaram o nome para usar como desculpa para seu fracasso como ser humano e uma única que não mudou porque decidiu esperar a moda voltar. Houve até um político, grande representante dos interesses da S.H.M.P, que se aproveitou para atacar e tentar criminalizar. Por mais que não tenha conseguido a criminalização, conquistou popularidade o suficiente para subir do cargo de lambedor de bolas dos militares para mamador de tetas do governo federal e ainda levou consigo toda a família.
      Seu Bundão voltou a ser um cidadão médio tendo que aceitar sobreviver como pintor de papel higiênico, porém, continuou tomando no cu secretamente por prazer. Em nenhum momento se revoltou, protestou ou lutou por seus direitos e dos que se mantiveram com o desejo de engolir piroca. Simplesmente aceitou o que vinha de cima, iniciou pela internet um sólido e monogâmico relacionamento com Sua Mediocridade, e vive enchendo o cu de cachaça.

      Desde que a maior estrela da música pop disse em uma entrevista que é possível sentir prazer pelo cu, a prática voltou a ser aceita de forma discreta. Hoje tomar no cu, ou engolir piroca, ainda divide opiniões, e sustenta perseguidores. Muitos praticantes ridicularizam ou preferem não tocar no assunto, como Seu Bundão. Os que declaram publicamente ou tentam defender os direitos de quem toma no cu, são uma minoria.
      No alto dos seus sessenta e pouco anos, ele descobre que não poderá se aposentar, pois, as leis que dão direito ao benefício mudaram e lhe pede mais tempo de contribuição. Agora ele pensa na sua história de vida, no que o médico disse e se arrepende dolorosamente do seu silêncio. Se ele tivesse aproveitado da sua influência dos dias em que esteve por cima para se posicionar, se não tivesse subestimado a negatividade em volta do termo que definia sua atividade só porque lhe parecia absurda a possibilidade de alguém encrencar sério por tomar no cu. Chegou a se arrepender de não ter tentado comprar influência política.
      Todos esses pensamentos construíram uma estrada de tijolos amarelos até o prédio onde costumava subir até o terraço para, com seu único olho, observar o pôr do sol e eventualmente considerar se jogar. No elevador, sua cara de bunda foi reconhecida por uma senhora que estava acompanhada de dois jovens. A satisfação em encontrar seu ídolo do passado, levou a mulher a além de encher Seu Bundão de marcas de batom, a convidá-lo para a festa que ela daria com os dois rapazes em seu apartamento. Bundão lembrou da orientação médica, ignorou a possibilidade de suicido, pensou que ele e o sol estariam vivos do dia seguinte e finalmente falou: "Aceito com muito gozo ao seu convite com as condições de receber lambidas no cu e ter a chance de engolir duas pirocas ao mesmo tempo.". "Esse é o meu querido Cu de Aço! Bora lá, fechou!" concordou a senhora excitadíssima.
      Tudo aconteceu conforme o combinado e os rapazes logo foram embora. Bundão seguiu no apartamento se abrindo para a mulher. Estava satisfeito com a ideia de não mais se calar. A conversa o levou a descobrir que se tratava da sócia de uma popular plataforma de streaming. Ela acabou tendo a ideia para um reality show onde mostraria seu duro cotidiano e sua luta na justiça para conseguir sua aposentadoria.
      Seu Bundão foi para casa só no dia seguinte. Assim que cruzou a porta e o celular conectou o Wi-Fi, o bolso vibrou. A mensagem era de Sua Mediocridade: "Bom dia, Bumbum! Seguinte, acho que não vou ter mais tempo pra você. Você deve ter notado um certo distanciamento, e o que eu tenho te dizer é que a tendência é piorar. A verdade é que nosso relacionamento deixou de ser monogâmico pra mim já tem algum tempo. Começou com o meu 'zap' recebendo umas selfies de 'tanquinho' de um sarado de academia, depois foram surgindo os que queriam demonstrar bom gosto musical criticando funk e pagode dizendo que não se faz mais música como antigamente, que hoje em dia tá muito chato porque já não se pode humilhar mais ninguém por causa de sua diferença; cada vez mais a repetição da repulsa ao politicamente correto, à luta pelos direitos mais básicos de quem não tem, às cotas raciais nas universidades, Cuba, Venezuela, um pavor monstruoso e infundado do 'fantasma do comunismo', de repente aparacem os que acreditam que a Terra é plana, que, sem dúvida, o nazismo é de esquerda e que uma ditadura militar não é uma ditadura. Quando eu vi já estava envolvida com 57 milhões de pessoas, mediocridade demais para eu não me identificar. Me senti a Scarlett Johanson no filme 'Ela'. Como eu disse, só estou esclarecendo que não terei mais muito tempo pra você, mas não vou te abandonar. Enquanto você for Bundão, sempre haverá Sua Mediocridade! Fica de boa na lagoa e nos comentários pela internet! XOXO".

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